Constituição e sociedade
Por Rodrigo Brandão*Rio de Janeiro
O presente artigo busca examinar os principais riscos da prolação de decisões maximalistas em questões tecnicamente complexas, interdisciplinares e rapidamente mutáveis.
Em síntese, uma decisão maximalista se caracteriza essencialmente por se fundamentar em razões amplas e profundas [1]. A (i) amplitude da fundamentação se vincula ao fato de os seus adeptos não se limitarem a usar as razões necessárias à resolução do caso em análise, nem se jungirem a decidir um caso por vez, atentando às suas particularidades. Ao revés, mostram-se inclinados a construir extensas teorizações a partir das quais são deduzidas regras para a resolução de casos futuros. Disto decorre o seu caráter prescritivo, já que, para além da decisão sobre o caso concreto, são estabelecidos parâmetros para a resolução de hipóteses futuras, possuindo a decisão, portanto, forte efeito prospectivo e impacto sobre a atuação superveniente dos demais Poderes. Já a (ii) profundidade da fundamentação se relaciona com a propensão a considerações abstratas e fortemente teorizadas que descem à raiz de questões complexas e controvertidas, como o conteúdo constitucional das liberdades constitucionais, da igualdade, da dignidade da pessoa humana etc.
Ambas as características se colocam diante da utilização de princípios constitucionais abstratos como parâmetros de decisão, a partir dos quais se extraem considerações doutrinárias amplas e profundas. Não raro tais considerações se encontram associadas a análises morais, políticas, filosóficas e econômicas bastante complexas e controversas, sem que se preste a devida consideração a questões institucionais e democráticas, ou seja, se consiste em decisão que melhor se amolda às competências constitucionais do Judiciário ou dos demais poderes
Importante crítica ao maximalismo é desenvolvida por Cass Sunstein e Adrian Vermeule. Os autores destacam que, em matérias onde grasse forte complexidade (p. ex., moral, científica, econômica etc.), a Corte pode se deparar com falta de informações, circunstâncias mutáveis e desacordo moral razoável e irremediável, fatores que aumentam bastante os custos de decisão e de erro, e, assim, recomendam postura cautelosa e humilde [2].
Por exemplo, diante de questões ligadas à bioética, parece recomendável ao juiz que reconheça que a sua formação jurídica e a natureza do processo judicial não lhe fornece as informações adequadas para construir regras amplas e profundas destinadas a deixar tudo decidido a respeito dos diversos e complexos aspectos constitucionais suscitados pela evolução da genética. Além disso, a celeridade da evolução tecnológica sugere um modelo de decisão experimental, em que o tomador de decisão constrói progressivamente as soluções, a fim de beneficiar-se das novas descobertas científicas e de evitar que ascircunstâncias mutáveis subjacentes à questão conduzam a consequências não antecipadas pela decisão original.
Assim, uma eventual postura maximalista em face de questões altamente complexas aumentaria a possibilidade de erro e a dificuldade da sua correção, sobretudo se adotada pela Suprema Corte em regimes de supremacia judicial, nos quais a sua interpretação constitucional só pode ser revertida por nova decisão da Suprema Corte ou por Emenda Constitucional. Mesmo uma decisão boa, porém precipitada, pode gerar efeitos ruins à democracia, pois a colocação de uma visão sobre questão controvertida fora do alcance de maiorias legislativas ordinárias produz tendencial polarização no debate político, já que os perdedores não se sentirão reconhecidos pelo projeto constitucional e tenderão a radicalizar os seus discursos e práticas [3]. Exemplo paradigmático disto foi a decisão proferida pela Suprema Corte dos EUA no caso Roe v. Wade, que fomentou notável polarização no debate norte-americano sobre a postura que o Estado deveria adotar em face do aborto.
Por outro lado, o desacordo moral razoável é uma das características mais marcantes das sociedades pluralistas contemporâneas. Duas técnicas principais são usadas para compatibilizar o reconhecimento de cosmovisões diferentes com a estabilidade social (e a consequente necessidade de obter-se um consenso moral mínimo): os compromissos dilatórios e os acordos incompletamente teorizados [4]. Os primeiros, tipicamente adotados nas Constituições nacionais, consistem em acordos quanto a princípios gerais, diante da persistência do desacordo em relação a normas específicas (i. e., acordo quanto à liberdade de expressão, ainda que haja desacordos profundos quanto à regulação da mídia). Já os segundos consistem no oposto: acordos quanto a decisões sobre casos concretos, mantendo-se o desacordo quanto aos seus fundamentos mais gerais (i. e., acordo quanto à segregação da mulher no mercado de trabalho violar a igualdade, embora não se partilhe da mesma concepção de igualdade).
Sunstein considera que os acordos incompletamente teorizados prestigiam o ideal de reciprocidade e de mútuo respeito tão caros às democracias constitucionais contemporâneas, pois permitem o acordo quando ele é necessário, e o tornam desnecessário quando ele é impossível [5]. Explica-se: ao não se recorrer a uma determinada concepção de princípio constitucional aberto, mas a razões mais estreitas e rasas que são amplamente compartilhadas na sociedade, logra-se obter consenso sobre a resposta para problema concreto de forma respeitosa a diversas concepções sobre o princípio constitucional em questão. Caso se optasse por fundamentar a decisão em uma controversa leitura de princípio constitucional, seria suscitado um desacordo desnecessário, pois os que não partilham daquela concepção não se reconheceriam na decisão.
A frequente desconsideração da capacidade institucional e dos efeitos sistêmicos faz com que as tradicionais teorias de interpretação do Direito pressuponham uma visão idealizada e romântica das capacidades judiciais, segundo a qual o juiz teria todo o conhecimento e tempo necessários para obter resultados ótimos, ou, em outras palavras, para construir a “correta interpretação” (first-best theories) mesmo em face de questões muito complexas. Se, entretanto, o jurista estiver consciente das suas limitações de tempo e de conhecimento, e da consequente elevação dos custos de erro e de decisão quando se deparar com questão complexa, tomará uma decisão de segunda ordem de decidir casos (decisão sobre como decidir), via de regra, segundo razões rasas e estreitas. Rasas, pois os juízes minimalistas preferirão entendimentos mais modestos e largamente compartilhados a controvertidas questões de princípio. Estreitas, pois os juízes minimalistas preferirão decidir o caso a construir teorias que abranjam uma grande variedade de casos [6].
Embora já se tenha destacado que a conveniência do minimalismo se restringe a casos altamente complexos (que correspondem, via de regra, à minoria dos casos decididos por uma Corte Constitucional), convém reafirmar o caráter contextual da defesa desse modelo de decisão. Com efeito, diante de questões complexas, sujeitas a circunstâncias mutáveis e a desacordo moral razoável, o minimalismo é preferível (i) por reduzir a possibilidade de erro e de consequências não antecipadas, (ii) por seguir um modelo de decisão experimental e flexível, mais adequado a uma realidade sujeita permanentemente a mudanças, e (iii) por conciliar estabilidade social com respeito à visão do outro, na medida em que reluta a recorrer a princípios controvertidos [7].
Porém, em um cenário diverso – que, como acima destacado, se revela mais comum no dia a dia da jurisdição constitucional, notadamente da brasileira – se justifica modelo de decisão mais abrangente. Por exemplo, em questões de menor complexidade, sujeitas a condições mais estáveis, nas quais os juízes tenham amplo domínio das questões de fato subjacentes, menos sujeitas aos influxos de outras disciplinas do conhecimento, é possível haver boa dose de confiança na prolação de uma decisão mais abrangente [8].
Por fim, faz-se necessária uma harmonização – breve que seja – do debate norte-americano sobre o minimalismo à realidade brasileira, pois não raro ideias e conceitos jurídicos viajam mal o Atlântico, como diz, com a habitual percuciência, o Professor Ricardo Lobo Torres. Se lá houve períodos de excessiva intervenção do Judiciário no cenário político (de viés conservador ou progressista), aqui, ao menos até o advento da Constituição de 1988, o problema foi o oposto, ou seja, de “falta de Judiciário”, pois as notáveis dificuldades de estabilização da democracia brasileira inviabilizaram que o Judiciário avançasse em um controle mais amplo dos poderes políticos [9]. Portanto, na realidade brasileira se justifica uma postura mais abrangente do Supremo Tribunal Federal sobretudo na defesa dos direitos fundamentais e da democracia, e no controle da compatibilidade dos atos dos demais poderes às respectivas competências constitucionais.
Nada obstante, não se pode esquecer os riscos trazidos pelo emprego de modelo de decisão maximalista, mesmo em nossa realidade. Com efeito, decisões maximalistas em questões altamente complexas, mutáveis e sujeitas a desacordos morais razoáveis e irremediáveis fomentam as chances de erro, o risco de consequências não antecipadas, de decisões contraditórias, de polarização política etc. Cautela, comedimento, respeito a outros ramos do conhecimento e a diferentes visões de mundo são, nesta seara, bastante recomendados para que a Corte Constitucional cumpra a sua função de proteger a Constituição sem priorizar ou desfavorecer cosmovisões particulares, zelando pela coerência, correção e durabilidade das suas decisões.
* Professor-Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público pela UERJ. Procurador do Município do Rio de Janeiro.
[1] – Ver SUNSTEIN, Cass. R. One case at a time – judicial minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2001; SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme rightwing Courts are wrong for America. New York: Basic Books, 2005; SUNSTEIN, Cass. R. A Constitution of many minds – why the founding document doesn’t mean what it ment before. New Jersey: Princeton University Press, 2009.
[2] – SUNSTEIN, Cass. R. One case at a time – judicial minimalism in the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2001. p. 46/61.
[3] – SUNSTEIN, Cass. A Constitution of many minds – why the founding document doesn’t mean what it ment before. New Jersey: Princeton University Press, 2009.
[4] – Sunstein, Cass R. Incompletely theorized agreements in constitutional law. University of Chicago, Public Law Working Paper, n. 147. Disponível aqui (acesso em 20/08/2010). Embora Sunstein denomine ambas as hipóteses de “acordos incompletamente teorizados”, preferiu-se reservar tal denominação à segunda, pois a primeira foi designada por Carl Schmitt como “compromisso dilatório”, terminologia que se difundiu no Direito Constitucional. Ver SCHMITT. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
[5] – SUNSTEIN, Cass. R. One case at a time – judicial minimalism in the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 14.
[6] – SUNSTEIN, Cass. R. Radicals in robes: why extreme right-wing courts are wrong for America. New York: Basic Books, 2005.
[7] – SUNSTEIN, Cass. One case at a time – judicial minimalism in the Supreme Court. Op. cit., p. 24/46.
[8] – SUNSTEIN, Cass. R. Beyond judicial minimalism (september 25, 2008). University of Chicago, Public Law Working Paper, n. 237. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1274200>; SUNSTEIN, Cass. One case at a time – judicial minimalism in the Supreme Court. Op. cit., p. 57.
[9] – Ver BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial v. diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre a interpretação da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.
Fonte: Jota Info